Consegui superar-me. Ou melhor, os transportes públicos lisboetas conseguiram superar-se. Cheguei atrasada mais de meia hora em ambos os meus dois primeiros dias de aulas devido a atrasos nos autocarros. Suponho que a greve do metro tenha tido algo que ver com o assunto, uma vez que para onde quer que olhasse, apenas conseguia vislumbrar autocarros em serviço ocasional reservados aos utentes do metro de Lisboa. É claro que a minha resolução de não me deixar permear ao stress neste novo ano caiu imediatamente ao chão e foi a rolar pela berma da estrada. Nunca mais a vi. A quem circule pela Praça do Comércio, um aviso: se encontrarem uma gabardine à prova de stress a entupir uma sarjeta, é minha. Isto porque, ao contrário das restantes almas humanas, as almas estudantis não fazem resoluções de ano novo a trinta e um de Dezembro, mas sim nas vésperas de um novo ano lectivo.
Fora isto, que fez com que em apenas dois dias eu já tenha oito horas de deslocações casa/escola no papo, as coisas lá para cima estão mais compostas.
Mais professores, mais apoio, e sobretudo, parece-me que também mais respeito pelos alunos.
É estranho imaginar que já poderia estar no terceiro ano, não fosse a infeliz primeira tentativa frustrada...
Enfim, estou no segundo ano, e estou muito bem.
Vamos ver como vai correr.
O início das aulas foi adiado uma semana e aqui ando eu, arrastando-me sozinha pelos últimos dias de Sol entre quatro paredes mornas, lançando miradas constantes ao pedaço de papel que me mostra os dias das semanas que se aproximam sob uma grelha de padrão miúdo, que enjaula cada hora numa cela de aprendizagens predefinidas.
Catorze anos de aulas, estudo, felicidade, desilusões, empenho, surpresas, professores fascinantes (à relação de um para cada cinco), longas conversas de refeitório, momentos de orgulho, outros de profunda mágoa, e muitos de exaustão e descrença nos últimos tempos.
Queixo-me. Percebi que talvez tenha abdicado de demasiadas coisas em prol de tudo isto. Felizmente só o constatei agora.
Faltam quatro anos. Apenas quatro para poder calcular a razão custo-benefício daquilo que desde sempre me recordo como sendo a minha vida, e verificar que consegui um saldo francamente positivo.
Espero eu.
Esta noite sonhei que tinha uma cicatriz ao longo de todo o meu braço esquerdo. Era recente e estava cosida com uma linha fina, enlaçada em cruz. Repuxava-me a pele. Doía-me. Não sabia como tudo aquilo tinha acontecido, e ninguém me sabia dizer.
Agora, muitas horas depois de ter acordado, ainda sinto com estranheza a pele lisa do meu braço.
Para afogar as mágoas, nada como escutar o último (mas nem por isso muito recente) disco de Yann Tiersen .
De olhos fechados e com o volume no máximo, para não ouvir a discussão que a minha consciência tem mantido com a minha neurose. Já não posso suportar o barulho de gritos, portas a bater e loiça a partir-se. Isto cá por dentro está uma confusão. Qualquer dia acordo e reparo que uma das duas fez as malas e fugiu para longe: ou a minha consciência ou a minha obsessão. Finalmente perceberam que a sua convivência é impossível.
Ou se é estupidamente louco, ou racionalmente lúcido.
Ser-se tal como eu, estupidamente lúcida e racionalmente louca, não é aconselhável para ninguém.
Estou assustada.
A tensão e a ansiedade voltaram, ou pelo menos intensificaram-se. O medo, a compulsão, e o inevitável processo de negação e de recusa de todo o problema vieram com eles. Estou medicada há quase dois anos, e estou (ou pelo menos estava) prestes a suspender a medicação. Agora não sei o que vai acontecer. Tenho medo de nunca superar isto. Por outro lado quero largar os fármacos. Preciso de me conhecer sem eles, de saber o real ponto de situação, e sobretudo, sinto falta de muita da lucidez e capacidade de concentração que eles tiram de mim. Agora tenho medo. Estou prestes a regressar às aulas.
Preciso de falar com alguém rapidamente, caso contrário vou rebentar.
Novamente o medo de estar a enlouquecer.
Eu não merecia isto.
Estou farta.
As grandes cidades sempre exerceram um enorme fascínio sobre mim, uma vez que as considero o expoente máximo da civilização.
O buliço diário de milhares de pessoas, a forma como se organizam num espaço limitado, as infindáveis estruturas que dão abrigo a esta vertiginosa actividade, as inúmeras engrenagens que garantem o seu normal funcionamento, e a sua capacidade de constante renovação e adaptação ao presente são algumas das razões pelas quais sonho um dia poder trabalhar numa metrópole assim.
Claro que a perfeição não existe e algumas mentes tementes a Deus foram suficientes para dar origem a milhões de almas tementes ao Homem, tendo este cenário não só como pano de fundo mas como personagem principal.
O que me perturba é saber que se Deus é inalcançável para aqueles que se revoltam contra Ele, o mesmo já não acontece quando o objecto que odiamos está cá em baixo e é mortal.
E eu espero para ver, ansiando não ver mais nada.
Se a inteligência é uma característica inerente ao ser humano, e a principal que o distingue dos restantes seres na face do planeta, é natural que todos os Humanos esporadicamente demonstrem possuí-la.
Neste caso, porque é que os pais têm sempre que exaltar as demonstrações de inteligência menos que mediana dos seus rebentos, como se tivessem generosamente acabado de dar ao mundo um pequeno génio?
Fiquem sabendo que se geraram uma criança e não um cavalo, não contribui em nada para a minha felicidade saber que eles já sabem pensar, sobretudo se isso acontecer aos 20 anos de idade!
Hoje sinto uma vontade terrivelmente grande de perguntar aos que me conhecem:
- Afinal, o que pensas de mim?
Michael C Thornburgh
Sinto falta dos dias cinzentos.
Aqueles,
que combinam com a sombra escura plantada sob os nossos olhos.
Os mesmos em que a chuva, lançada de encontro aos vidros, distorce as figuras e esbate os contornos da paisagem lá fora;
Os dias da nostalgia, da depressão e das gaivotas que pairam sobre a cidade.
Aqueles em que o frio nos corrói até ao âmago do nosso ser, sem respeitar luvas, casacos e cachecóis.
Preciso dos momentos sufocantes rodeados pelas janelas embaciadas de um autocarro em hora de ponta.
Quero o som dos motores, dos pneus a tossir água, das buzinas, dos trovões, da chuva furiosamente disparada de encontro à chapa dos automóveis e que nos oxida a alma.
Quero o peso reconfortante dos cobertores.
Sinto falta dos dias cinzentos.
Esses mesmos.
Que tardam mas não falham.
Sempre alimentei uma imagem romântica do ambiente universitário. Sempre, até ao dia em que passei a fazer parte dele. A verdade é que a instituição "escola" me desiludiu bastante ao longo do tempo e neste momento não é mais do que um inevitável caminho a percorrer se quero vir a exercer no futuro a profissão que amo. A faculdade assegurar-me-á o indispensável diploma. De resto, os seres presunçosos, arrogantes e prepotentes que teimam em ser chamados de professores, amam não a profissão, mas o status de professor doutor universitário o raio que o parta. Mestres na arte de produzir frases ininteligíveis, de olhar de soslaio, e de redigir com os pés enunciados com vergonhosos erros ortográficos, são eles quem produz os profissionais da mula russa do futuro.
Meus amigos, uma instituição que aceita que os alunos acabados de ingressar no primeiro ano sejam forçados a relinchar e a andar de quatro durante os primeiros dias de aulas, que tolera magníficos e desafinados coros de caloiros com letras degradantes que contêm linguagem derivada de vocábulos como fodas , quecas , merdas e outras coisas que tais, tem conter alguma coisa de podre dentro dela.
Perdoem-me a linguagem e o tom, mas sinto-me desiludida com o caminho que escolhi há muitos anos atrás e que imaginava perfeito, enriquecedor e produtor de grandes, sonhadores e ambiciosos seres humanos.
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. Epílogo
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