Teve nove meses para preparar este momento. Não o fez.
A minha psicóloga entrou em licença de maternidade e desapareceu num piscar de olhos, pura e simplesmente.
Nem um número a contactar em caso de urgência, nem um colega para substituição, nem uma data prevista para regressar. Nada. Apenas uma mensagem de voz a anunciar a suspensão das sessões de terapia, vinda de um número anónimo.
O que é que ela fez com a confiança que lhe depositei?
Deitou no lixo.
O que é que ela fez com o dinheiro?
Imagino que terá tido outro destino mais digno...
Obviamente não esperava que ela abdicasse da licença, nem que a interrompesse. Mas num trabalho de tanta responsabilidade, estes momentos têm de ser cuidadosamente planeados. Ela não o soube fazer. Um número a contactar em caso de emergência [mesmo que fictício] teria sido uma ideia inteligente e sensata.
Afinal, ninguém melhor do que um psicólogo para saber que o terreno sobre o qual trabalha é frágil e inconsistente.
E sim, parece que sobrevivi a hoje. Quando à má disposição, suspeito de que se vai manter.
Odeio greves, abomino sindicatos, e todas as pessoas que aproveitam estes dias para testarem o seu poder, contabilizando os estragos que conseguem fazer nas vidas de quem precisa de trabalhar. Cultivo um verdadeiro asco a quem para além disto quer impugnar o funcionamento obrigatório de serviços mínimos.
Vou ser obrigada a entupir-me de tranquilizantes para chegar até Lisboa, amanhã. Depois vou ter de tentar fazer o exame sob o efeito deles.
Só desejo um belo dia de merda a quem está metido nisto. Tão bom quanto aquele que eu sei que vou ter. E desejo igualmente que não consigam chegar até às manifestações que organizaram por estarem presos no trânsito caótico de que vão ser responsáveis.
Vão todos para o Inferno, porque eu já lá estou graças a vocês.
Não estou.
Apenas as mãos e a razão necessária ao trabalho.
Vou tentar não ceder como uma colega, a quem as olheiras não largam e cujos ossos já empurram a pele com violência.
Felizmente, e embora nem sempre isto se manifeste com a devida intensidade, este trabalho é fruto de uma grande paixão, que permite um sorriso sempre que a cabeça começa a pesar demais.
Um grande pedido de desculpas à "Joana", a quem ainda não pude dedicar a mais do que merecida atenção.
Até já.
Estou sozinha em casa, e sei que a noite se vai prolongar. Há uma pilha de livros ao lado do teclado à espera que eu lhes despeje os olhos e alguma atenção por cima. Ás vezes tenho a sensação de que nem sei porque o faço. Talvez seja apenas a força do hábito, incrustado por tantos anos disto, tanta infância passada nas mesas da escola, ainda mesmo antes de saber quem era ou ao que vinha.
É que nunca me aconteceu o que me acontece ultimamente. Dar por mim a observar as pessoas que passam na rua enquanto eu estudo, e interrogar-me sobre o que farão. Fixar o olhar em quem toma um café descontraidamente numa esplanada, enquanto eu vou ou volto da faculdade com uma terrível dor de cabeça.
Na verdade, o que sinto é que não construí uma história minha. Estudar é como viver em incubação, e dou-me conta disso agora.
A minha história consiste no que vivi nos intervalos entre aulas, no que senti em visitas de estudo ou no que experimentei numas curtas férias entre testes e exames. E já não me apetece. Quero ser eu a ditar a minha própria história, o meu ritmo, o capítulo que se segue.
Mal posso esperar pelo momento em que poderei agarrar na bagagem que consegui recolher em todos estes anos, e começar finalmente a escrever os meus dias.
Falta pouco.
Até lá, a constante de Euler, as regras de derivação, primitivação e o cálculo integral vão ter de continuar a aturar-me.
Pelo menos a contar a partir de agora, e até ao nascer do sol de amanhã.
O bairro pode dormir descansado, porque eu vou estar aqui a guardar o seu sono.
Quando as pedras da calçada do Bairro Alto ganham vida própria sob os nossos pés e nos boicotam o equilíbrio.
A lua quase cheia lá em cima, as estradas recém-lavadas, o ruído mecânico da recolha do lixo ao longe, os seus clarões laranja a varrer fachadas, a cidade deserta...
Escutar pela primeira vez o eco dos meus passos na calçada lisboeta, vendo o meu castelo iluminado no alto da colina..
E correr para o último barco da noite, com a satisfação do dever cumprido.
Lisboa foi só minha por momentos.
Não digam a ninguém, é segredo...
. ...
. Epílogo
. .
. ...